Por Flávio Dias
Filmes musicais ou você
ama, ou você odeia. No caso de “Tommy”,
você fica no meio termo. Não chega a ser ruim, mas também não é assim uma
obra-prima indispensável. Tem boas cenas, atuações razoáveis, músicas e seus
números para lá de discutíveis. O que agrada aqui é o feito saído de um álbum
do The Who para as telonas.
Tommy é um garoto nascido
no primeiro dia da vitória da Segunda Guerra Mundial. Não conheceu seu pai. Sua
mãe se envolve com outro homem em um acampamento de férias. Em um belo dia, tem
um trauma e fica cego, surdo e mudo por bom tempo em sua vida.
Parece estranho ter uma trama usando uma tripla deficiência, mas funciona para o propósito do longa. Peter Townshend, líder do The Who, escreveu a ópera-rock nos anos 60, lançada precisamente no dia 23 de maio de 1969. O filme chegou as telas em 26 de março de 1975. No Brasil, um ano depois, em 04 de abril de 1976. E com censura. Quem produziu foi Robert Stigwood, famoso produtor de musicais como “Jesus Cristo Superstar (Jesus Crist Superstar, 1973)”, “Quando as Metralhadoras Cospem (Bugsy Malone, 1976)”, “Os Embalos de Sábado a Noite (Saturday Night Fever, 1977)”, “Grease: Nos Tempos da Brilhantina (Grease, 1978)”, “Evita (1996)”, entre muitos outros. Ken Russell foi o responsável pela direção. E fez perfeitamente, apesar das loucuras delirantes em cenas.
Marcam no filme cenas
fortes e estranhas, de loucuras e imagens que parecem delírios do jovem Tommy (Roger Daltrey, um dos fundadores do The
Who), assim como de outras personagens. A começar pelo trauma sofrido na
infância, vendo seu pai, um soldado da aeronáutica (Robert Powell), ser morto e sua mãe Nora (Ann-Margret) dizendo “você
nunca viu, nunca ouviu e nunca vai falar”, junto com o padrasto Frank (Oliver Reed), que a mãe conheceu no
acampamento de férias com o filho. Já adulto, foi abusado sexualmente pelo tio
Ernie (Keith Moon, baterista do The
Who); passou por tratamento com a “cigana,
rainha do ácido”, dentro de uma espécie de cabine em forma do corpo humano,
onde coloca Tommy e é injetado com várias seringas, com imagens como ele
apodrecendo, com cobras, em formato de esqueleto, com a capsula da cabine
girando, girando com a canção da rainha do ácido Tina Turner. O primo Kevin (Paul
Nicholas) maltratou de todo e qualquer jeito, de maneira violenta,
torturando-o. Passou por tratamento com o especialista (Jack Nicholson); foi para um culto de cura do pastor vivido por Eric Clapton, onde tem a imagem de Marilyn
Monroe como uma santidade. Essa cena foi cortada na versão brasileira na época
da estreia, perdendo uns bons minutos do filme (consta na versão disponível no Prime Vídeo). A melhor cena fica com o
duelo do The Pinball Wizzard, vivido
por Elton John. A sequência da
disputa de melhor jogador de fliperama é bem executada e com uma canção menos
estranha. Com as pernas longas, Wizzard perde para Tommy, o rapaz cego, surdo e
mudo vira uma estrela popular do jogo.
Mas a cena mais estranha
fica com a mãe Nora. Em um excesso de loucura, questionando porque Tommy não
volta ao normal, joga uma garrafa na televisão, onde passam propagandas de
diversos produtos, e começa a jorrar feijão, chocolate, champanha em todo o
quarto branco, que até aquele momento, ela goza do sucesso do filho jogando
pinball. Enrolando no chão, na cama, delirando na sujeira em uma cena que
demorou 3 dias para ser feita. E é aí que muda o tom de “Tommy” para uma nova
vida enxergando, ouvindo e falando.
O filme inteiro é
musicado, não há diálogos. O início somente imagens com música instrumental.
Depois do primeiro ato, com o nascimento de Tommy, começam as músicas, por
vezes estranhas, passam a contar a história. Não é um musical clássico, com
grandes coreografias que faz você dançar. Mas é uma peça teatral em película.
Curiosamente, só foi para o teatro em 1993, com Peter Townshend produzindo o
espetáculo e no papel título Michael
Cerveris (veja mais abaixo sobre a
peça teatral). É um longa difícil de assistir, ainda mais se você não
conhece a obra do The Who. O único problema está no som muito baixo. Talvez
seja do próprio Amazon Prime Vídeo,
onde o filme está disponível.
Foi indicado a melhor
atriz para Ann-Magret e melhor música para Peter Townshend no Oscar de 1976. No Globo de Ouro a atriz levou o prêmio, Roger Daltrey foi indicado
como ator, assim como de melhor filme de comédia ou musical.
Críticas da época que servem para hoje
Tenho que concordar com a
crítica de Nelson Motta na época do
lançamento do filme no Brasil. O título já entrega: “Maravilhoso. Mas depois a caretice”. Cita Motta: “Toda esta parte inicial é conduzida por Ken
Ruseell através de imagens fortes, barrocas, ostensivamente operísticas. (...)
delirante, uma verdadeira ópera transando com temas violentamente atuais, numa
linguagem rock, utilizando os mitos e ritos de nosso tempo para a apresentação
de uma história capaz de mobilizar qualquer pessoa, porque trágica, edipiana,
verdadeiramente brutal.” Cita ainda, no texto publicado no jornal O Globo do dia 7 de abril de 1976, os
melhores momentos do filme, com o diretor “Russell
construindo um explosivo contraponto entre o “punch” da música e as imagens que
passam na cabeça de Tommy em confronto com a grossura da realidade: as
delicias, torturas e culpas de mãe e padrasto”.
E aí vem a crítica
negativa do filme. Motta não economiza palavras. Chama de “chatura”, de redundante e confusa: “(...) embora a música não decaia, as imagens são dignas dos piores
programas de televisão brasileira (...). Fica uma sucessão de redundâncias de
texto e imagem, contando uma chatíssima e confusa história, conduzida não mais
no tom grandiosamente romântico e operístico do início e sim nos climas mais
insuportáveis de velhas operetas americanas”. Claro que Nelson Motta
exagera no tom da crítica. E deixa bem evidente sua insatisfação depois da cura
de Tommy. Inclusive aconselha ao telespectador: “Depois que Tommy fica curado você pode sair que não perde nada. Se não
quiser perder meio ingresso, fique de papo na sala de espera, vá ao banheiro,
coma umas balas e volte para assistir a primeira parte de novo...”. Por
mais que um filme seja ruim, eu não seria louco de sair da sala. Até porque
hoje os ingressos de cinema são pequenas fortunas.
No mesmo dia, na mesma
página do O Globo, no caderno intitulado “O
Bonequinho viu”, Ana Maria Bahiana
faz sua análise sobre o longa em comparação com o disco de 1969 do The Who. “(...) o melhor Tommy ainda é a ópera-rock
original, aquela do disco duplo de capa azul, de 1969. Nenhuma versão posterior
– e houve duas, a trilha do filme e a “versão de luxo”, com orquestra sinfônica
e artistas convidados – conseguiu chegar aos pés desse álbum vigoroso, impulsivo,
arrebatador”. Bahiana ainda fala que o musical de Ken Russell sai perdendo,
que “não é rock, é uma amostra de rock,
um artefato plástico, industrial, sintético, com cor e sabor de rock. Rock é o
que o Who faz habitualmente (...) no palco, em discos como o primeiro “Tommy””.
Ao mesmo tempo que elogia o feito da telona, com o capricho e perfeição, do
funcionamento das músicas, Bahiana termina o texto indicado a melhor oferta de
emoção: “Mas quem quiser se sentir
tocado, emocionado, comovido, com vontade de cantar e dançar, compre correndo o
modesto disco azul de 1969. E compare à vontade”.
Ken
Russell
O diretor inglês Ken Russell dirigiu com firmeza “Tommy”. Não se pode negar a segurança
em cenas delirantes e difíceis de ser executadas, com músicas e atuações na
medida do possível para entregar uma obra, se não perfeita, assistível para
qualquer um. Cheio de estrelas do cinema, Russell conduziu Tommy para aquilo
que a música de Peter Townshend possibilitou em todas as fases da vida do jovem
que perdeu a voz, o som e a visão. Não se vê grandes problemas no conjunto
total do longa de 1975. Apesar que fica abaixo de outras obras musicais
cinematografadas, o resultado não é ruim, mas também não chega a ser grandioso.
Sobre o filme “Tommy”, Russell, em matéria do O Globo de 4 de abril de 1976, fala
sobre o diretor e seu ponto de vista sobre o longa baseado na obra de
Townshend. A matéria começa falando do diretor: “Ken Russel gosta das coisas espetaculosas e gosta que elas assim se
pareçam. O compositor russo Tchaikovsky foi um dos alvos desse seu entusiasmo
eloquentemente calculado”. O diretor a época disse que não entendeu a
história, mas depois afirmou que é “a
maior obra de arte deste século” e que “ela
não fez muito sentido”, completando: “Começava,
de repente, com um assassinato. Depois, eu não consegui entender bem porque o
rapaz era cego, surdo e mudo”. Townshend explicou a trama para o Russell,
apresentando seis roteiros “e nenhum
deles era bom”, pediu ao músico da obra mais informações para construir melhor
e “pensar como ele pensava”. Completa
Ken: “Quando chegamos a esse ponto,
conclui que estava na hora de contribuir com minhas próprias ideias. Discutimos
tudo extensivamente. (...) já tínhamos conversado a respeito do material extra
que eu julgava ser necessário. (...) Desenvolvemos alguns números, expandimos
outros consideravelmente”. Russel admite que parte do elenco não conhecia:
“Jamais tinha ouvido falar de Eric
Clapton, Elton John ou Tina Turner”. Sobre o sucesso do filme falou: “Na realidade, o filme é qualquer coisa que
não se pode descrever com palavras. E ao mesmo tempo um filme e uma ópera. É
mais espiritual do que emocional. É algo como uma exploração de um novo
campo. Uma experiência. É a coisa mais
excitante que tentei realizar até hoje e espero que seja, de fato, um filme
capaz de contagiar as pessoas de todas as idades”. Para realizar a
experiência musical dentro das salas de cinema, as 30 canções tiveram um
sistema chamado “quintophonic sound”,
segundo a matéria do O Globo, que consistia na distribuição de alto-falantes
nas salas de cinema, nos quatro cantos e um quinto por trás da tela. Também
afirmou que a decisão de dirigir o musical, foi “pelas possibilidades visuais oferecidas pela música”, levando os
críticos a chamar de “comerciatismo de
mau-gosto”. E completa sobre os críticos: “Meu filme expõe um conceito absolutamente novo de cinema musical. Não
me preocupo com o que os críticos disseram ou irão dizer, simplesmente porque
já desisti de interessar-me pelo que eles pensam”.
Henry Kenneth Alfred
Russel nasceu em 3 de junho de 1927 na cidade de Southampton na Inglaterra. Foi
fotógrafo e dançarino antes de se tornar diretor. Tentou o balé e o teatro, mas
não obteve sucesso. Como fotógrafo, vendeu suas fotos para revistas. Seu primeira
curta-metragem foi em 1956 com “Peepshow”.
Dois anos depois chegou a TV com curtas e documentários. Seu primeiro longa
como diretor chegou somente em 1964 com “French
Dressing”. A primeira indicação à prêmios foi no BAFTA na série documental da BBC
“Omnibus (1967 – 2003)”, para o
episódio “Dance of the Seven Veils
(1970)”, no caso o músico Richard Strauss. O programa tem a música como
tema principal, trazendo a biografia de muitos músicos da época. Considerou o
melhor trabalho que fez. “Mulheres Apaixonadas
(Woman in Love, 1969)” levou Russell a receber várias indicações a prêmios.
No Oscar ganhou de melhor atriz para Glenda
Jackson e foi indicado a diretor, roteiro e fotografia. No BAFTA não foi
diferente: 11 indicações. Ganhou de filme estrangeiro no Globo de Ouro, com Russell e Glenda indicados. Curiosamente, Oliver
Reed, o padrasto de Tommy, participa do filme no triângulo amoroso. Sobre
Glenda Jackson falou: “Quando ela entrou
na sala me peguei olhando mais para suas varizes do que seu rosto, e só mais
tarde percebi a magnífica personalidade de tela que era ela. Eu nunca conseguia
entender direito.”
O diretor seguiu
dirigindo filmes e chegou a escrever um roteiro sobre Maria Callas e queria Sophia
Loren no papel. O projeto foi descartado. Nos anos 80 fez seus últimos
filmes para o cinema, talvez também os últimos com maior impacto: “Viagens Alucinantes” (Altered States, 1980)
com William Hurt e “Crimes de Paixão” (Crimes of Passion, 1984)
com Kathleen Turner e Anthony Perkins. Seu último filme para
as telonas foi “A Prostituta” (Wrote,
1991) com Theresa Russell, que
não é parente do diretor. Depois disso fez documentários, telefilmes e curtas.
Também constam clipes de Elton John
como “Nikita” e “Cry to Heaven”. Ken Russell, que foi apelidado de Orson Welles
britânico, morreu em 27 de novembro de 2011 aos 84 anos.
Broadway
Do álbum ópera-rock para
o cinema foram 6 anos. Foram mais 24 anos para a chegar na Broadway e 18 anos do filme para a peça musical. Em 22 de abril de
1993 estreou o espetáculo de Peter
Townshend e sua trupe nos palcos do teatro Martin Beck Theater. Com 47 anos, sendo que tinha 22 anos ao lançar
o álbum duplo de “Tommy”, a sensação
de Townshend, segundo matéria do O Globo de 6 de abril de 1993, com o título “Sons de um herói no escuro”, foi de dor.
O guitarrista do The Who explicou o
motivo: “Tocar guitarra para mim, hoje, é
uma agonia. Dói. Machuquei o braço em setembro de 1991: caí de bicicleta, torci
o pulso e desde então tenho dificuldade em flexionar a mão”. Logo depois do
acidente, conheceu Des McAnuff,
através da produtora teatral Dodger
Productions, propuseram montar o musical para os palcos da Broadway.
Aceitou e ainda falou a única condição: “Para
mim está bom. Isto é, desde que vocês consigam um bom diretor e me deem tempo
para acabar de rever o texto”. O diretor foi McAnuff e coautor do texto.
Houve algumas alterações no texto para adaptar para os anos 90, como a troca da Primeira Guerra Mundial pela Segunda Guerra Mundial, as gírias, um final um pouco diferente. O resto está tudo como nas canções de 1969. O caminho da obra foi longo. Do álbum, ainda houve um concerto com cada integrante do grupo fazendo uma personagem em 1970. Em 1972 o espetáculo all-star com participação da Sinfônica de Londres. O filme não demorou e chegou as telonas em 1975. Ainda teve o livro em 1977. O próximo passo que faltava: um musical na Broadway. Nos anos 70 houve outras obras de compositores, letristas e apaixonados por musicais, seja no palco dos teatros, seja no cinema. “Jesus Cristo Superstar”, que segue a mesma linha de “Tommy”, também teve peça, filme, livro e ainda muito vivo nos palcos pelo mundo afora. Muitas outras obras no cinema, no palco seguiram a linha de sucesso. “Tommy” até hoje ainda é encenado na Broadway.
O Brasil também recebeu o
show teatral. Em agosto de 1996 a equipe do espetáculo aterrissou no Rio de
Janeiro para apresentar “Tommy”. Desta vez, Jason Reiff vive o jovem cego, surdo e mudo. Como tudo que passa,
houve novamente alterações na trama, mas segundo a diretora Victoria Bussert, em matéria de Karla Rondon Prado do O Globo de 23 de agosto de 1996, a
história fica açucarada, como o pai matando o amante, ao contrário do longa de
1975. “Esta mudança é logica e não impede o trauma, já que o Tommy quer é
defender a única família que tem e terminar feliz”, diz Bussert. Os
diálogos também sofreram alterações. A diretora explica: “É uma forma de torna-la acessível, sem perder a alma da obra”.
A estreia ocorreu no dia
22 de agosto de 1996 com ingressos entre R$ 25,00 a R$ 70,00. Trouxeram 45
integrantes, 25 delas no Brasil, 25 toneladas de equipamentos, 20 caminhões
para transportar a carga, 3 dias para montar, 300 instrumentos de luz (todos
importados). 25 atores selecionados no total, trocam em sete em sete minutos os
1070 figurinos, com uma média de 4 personagens. O show ainda teve 3 teclados, 2
guitarras, bateria e trompa e 15 projetores com 450 slides.
“Tommy” recebeu 10 indicações ao Tony Awards, o Oscar do teatro nos Estados Unidos. Levou 5 para
casa.
Observação:
o texto não inclui sobre a banda The Who e suas músicas do disco Tommy. Para
maiores informações, procure nos links abaixo, ou pesquise em sites
especializados.
Ficha Técnica
⭐⭐⭐⭐
Tommy
Título Original: Tommy
Direção: Ken Russell
Roteiro: The Who, Peter Townshend, John Entwistle, Keith Moon, Ken Russell
Duração: 111 minutos
País: Inglaterra
Produção: Columbia Pictures, Robert Stigwood Organisation Ltda., Hemdale
Distribuição Brasil: Sony Pictures
Disponível no Brasil: Amazon Prime Vídeo
Fontes:
https://acervo.oglobo.globo.com/
https://www.adorocinema.com/filmes/filme-847/curiosidades/
https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/11/morre-o-cineasta-britanico-ken-russell-1.html
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/8/19/ilustrada/14.html
https://monkeybuzz.com.br/materias/dossie-the-who-50-anos-em-50-musicas/
https://monkeybuzz.com.br/materias/a-historia-de-tommy-narrada-por-the-who/
https://rollingstone.uol.com.br/search/?q=the+who
https://rollingstone.uol.com.br/noticia/tommy-the-who/
Imagens:
Google imagens
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