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quinta-feira, 23 de junho de 2022

Tommy

Por Flávio Dias


Filmes musicais ou você ama, ou você odeia. No caso de “Tommy”, você fica no meio termo. Não chega a ser ruim, mas também não é assim uma obra-prima indispensável. Tem boas cenas, atuações razoáveis, músicas e seus números para lá de discutíveis. O que agrada aqui é o feito saído de um álbum do The Who para as telonas.



Tommy é um garoto nascido no primeiro dia da vitória da Segunda Guerra Mundial. Não conheceu seu pai. Sua mãe se envolve com outro homem em um acampamento de férias. Em um belo dia, tem um trauma e fica cego, surdo e mudo por bom tempo em sua vida.





Parece estranho ter uma trama usando uma tripla deficiência, mas funciona para o propósito do longa. Peter Townshend, líder do The Who, escreveu a ópera-rock nos anos 60, lançada precisamente no dia 23 de maio de 1969. O filme chegou as telas em 26 de março de 1975. No Brasil, um ano depois, em 04 de abril de 1976. E com censura. Quem produziu foi Robert Stigwood, famoso produtor de musicais como “Jesus Cristo Superstar (Jesus Crist Superstar, 1973)”, “Quando as Metralhadoras Cospem (Bugsy Malone, 1976)”, “Os Embalos de Sábado a Noite (Saturday Night Fever, 1977)”, “Grease: Nos Tempos da Brilhantina (Grease, 1978)”, “Evita (1996)”, entre muitos outros. Ken Russell foi o responsável pela direção. E fez perfeitamente, apesar das loucuras delirantes em cenas.





Marcam no filme cenas fortes e estranhas, de loucuras e imagens que parecem delírios do jovem Tommy (Roger Daltrey, um dos fundadores do The Who), assim como de outras personagens. A começar pelo trauma sofrido na infância, vendo seu pai, um soldado da aeronáutica (Robert Powell), ser morto e sua mãe Nora (Ann-Margret) dizendo “você nunca viu, nunca ouviu e nunca vai falar”, junto com o padrasto Frank (Oliver Reed), que a mãe conheceu no acampamento de férias com o filho. Já adulto, foi abusado sexualmente pelo tio Ernie (Keith Moon, baterista do The Who); passou por tratamento com a “cigana, rainha do ácido”, dentro de uma espécie de cabine em forma do corpo humano, onde coloca Tommy e é injetado com várias seringas, com imagens como ele apodrecendo, com cobras, em formato de esqueleto, com a capsula da cabine girando, girando com a canção da rainha do ácido Tina Turner. O primo Kevin (Paul Nicholas) maltratou de todo e qualquer jeito, de maneira violenta, torturando-o. Passou por tratamento com o especialista (Jack Nicholson); foi para um culto de cura do pastor vivido por Eric Clapton, onde tem a imagem de Marilyn Monroe como uma santidade. Essa cena foi cortada na versão brasileira na época da estreia, perdendo uns bons minutos do filme (consta na versão disponível no Prime Vídeo). A melhor cena fica com o duelo do The Pinball Wizzard, vivido por Elton John. A sequência da disputa de melhor jogador de fliperama é bem executada e com uma canção menos estranha. Com as pernas longas, Wizzard perde para Tommy, o rapaz cego, surdo e mudo vira uma estrela popular do jogo.



Mas a cena mais estranha fica com a mãe Nora. Em um excesso de loucura, questionando porque Tommy não volta ao normal, joga uma garrafa na televisão, onde passam propagandas de diversos produtos, e começa a jorrar feijão, chocolate, champanha em todo o quarto branco, que até aquele momento, ela goza do sucesso do filho jogando pinball. Enrolando no chão, na cama, delirando na sujeira em uma cena que demorou 3 dias para ser feita. E é aí que muda o tom de “Tommy” para uma nova vida enxergando, ouvindo e falando.



O filme inteiro é musicado, não há diálogos. O início somente imagens com música instrumental. Depois do primeiro ato, com o nascimento de Tommy, começam as músicas, por vezes estranhas, passam a contar a história. Não é um musical clássico, com grandes coreografias que faz você dançar. Mas é uma peça teatral em película. Curiosamente, só foi para o teatro em 1993, com Peter Townshend produzindo o espetáculo e no papel título Michael Cerveris (veja mais abaixo sobre a peça teatral). É um longa difícil de assistir, ainda mais se você não conhece a obra do The Who. O único problema está no som muito baixo. Talvez seja do próprio Amazon Prime Vídeo, onde o filme está disponível.

Foi indicado a melhor atriz para Ann-Magret e melhor música para Peter Townshend no Oscar de 1976. No Globo de Ouro a atriz levou o prêmio, Roger Daltrey foi indicado como ator, assim como de melhor filme de comédia ou musical.

 

Críticas da época que servem para hoje

Tenho que concordar com a crítica de Nelson Motta na época do lançamento do filme no Brasil. O título já entrega: “Maravilhoso. Mas depois a caretice”. Cita Motta: “Toda esta parte inicial é conduzida por Ken Ruseell através de imagens fortes, barrocas, ostensivamente operísticas. (...) delirante, uma verdadeira ópera transando com temas violentamente atuais, numa linguagem rock, utilizando os mitos e ritos de nosso tempo para a apresentação de uma história capaz de mobilizar qualquer pessoa, porque trágica, edipiana, verdadeiramente brutal.” Cita ainda, no texto publicado no jornal O Globo do dia 7 de abril de 1976, os melhores momentos do filme, com o diretor “Russell construindo um explosivo contraponto entre o “punch” da música e as imagens que passam na cabeça de Tommy em confronto com a grossura da realidade: as delicias, torturas e culpas de mãe e padrasto”.



E aí vem a crítica negativa do filme. Motta não economiza palavras. Chama de “chatura”, de redundante e confusa: “(...) embora a música não decaia, as imagens são dignas dos piores programas de televisão brasileira (...). Fica uma sucessão de redundâncias de texto e imagem, contando uma chatíssima e confusa história, conduzida não mais no tom grandiosamente romântico e operístico do início e sim nos climas mais insuportáveis de velhas operetas americanas”. Claro que Nelson Motta exagera no tom da crítica. E deixa bem evidente sua insatisfação depois da cura de Tommy. Inclusive aconselha ao telespectador: “Depois que Tommy fica curado você pode sair que não perde nada. Se não quiser perder meio ingresso, fique de papo na sala de espera, vá ao banheiro, coma umas balas e volte para assistir a primeira parte de novo...”. Por mais que um filme seja ruim, eu não seria louco de sair da sala. Até porque hoje os ingressos de cinema são pequenas fortunas.



No mesmo dia, na mesma página do O Globo, no caderno intitulado “O Bonequinho viu”, Ana Maria Bahiana faz sua análise sobre o longa em comparação com o disco de 1969 do The Who. “(...) o melhor Tommy ainda é a ópera-rock original, aquela do disco duplo de capa azul, de 1969. Nenhuma versão posterior – e houve duas, a trilha do filme e a “versão de luxo”, com orquestra sinfônica e artistas convidados – conseguiu chegar aos pés desse álbum vigoroso, impulsivo, arrebatador”. Bahiana ainda fala que o musical de Ken Russell sai perdendo, que “não é rock, é uma amostra de rock, um artefato plástico, industrial, sintético, com cor e sabor de rock. Rock é o que o Who faz habitualmente (...) no palco, em discos como o primeiro “Tommy””. Ao mesmo tempo que elogia o feito da telona, com o capricho e perfeição, do funcionamento das músicas, Bahiana termina o texto indicado a melhor oferta de emoção: “Mas quem quiser se sentir tocado, emocionado, comovido, com vontade de cantar e dançar, compre correndo o modesto disco azul de 1969. E compare à vontade”.

 

Ken Russell



O diretor inglês Ken Russell dirigiu com firmeza “Tommy”. Não se pode negar a segurança em cenas delirantes e difíceis de ser executadas, com músicas e atuações na medida do possível para entregar uma obra, se não perfeita, assistível para qualquer um. Cheio de estrelas do cinema, Russell conduziu Tommy para aquilo que a música de Peter Townshend possibilitou em todas as fases da vida do jovem que perdeu a voz, o som e a visão. Não se vê grandes problemas no conjunto total do longa de 1975. Apesar que fica abaixo de outras obras musicais cinematografadas, o resultado não é ruim, mas também não chega a ser grandioso.



Sobre o filme “Tommy”, Russell, em matéria do O Globo de 4 de abril de 1976, fala sobre o diretor e seu ponto de vista sobre o longa baseado na obra de Townshend. A matéria começa falando do diretor: “Ken Russel gosta das coisas espetaculosas e gosta que elas assim se pareçam. O compositor russo Tchaikovsky foi um dos alvos desse seu entusiasmo eloquentemente calculado”. O diretor a época disse que não entendeu a história, mas depois afirmou que é “a maior obra de arte deste século” e que “ela não fez muito sentido”, completando: “Começava, de repente, com um assassinato. Depois, eu não consegui entender bem porque o rapaz era cego, surdo e mudo”. Townshend explicou a trama para o Russell, apresentando seis roteiros “e nenhum deles era bom”, pediu ao músico da obra mais informações para construir melhor e “pensar como ele pensava”. Completa Ken: “Quando chegamos a esse ponto, conclui que estava na hora de contribuir com minhas próprias ideias. Discutimos tudo extensivamente. (...) já tínhamos conversado a respeito do material extra que eu julgava ser necessário. (...) Desenvolvemos alguns números, expandimos outros consideravelmente”. Russel admite que parte do elenco não conhecia: “Jamais tinha ouvido falar de Eric Clapton, Elton John ou Tina Turner”. Sobre o sucesso do filme falou: “Na realidade, o filme é qualquer coisa que não se pode descrever com palavras. E ao mesmo tempo um filme e uma ópera. É mais espiritual do que emocional. É algo como uma exploração de um novo campo.  Uma experiência. É a coisa mais excitante que tentei realizar até hoje e espero que seja, de fato, um filme capaz de contagiar as pessoas de todas as idades”. Para realizar a experiência musical dentro das salas de cinema, as 30 canções tiveram um sistema chamado “quintophonic sound”, segundo a matéria do O Globo, que consistia na distribuição de alto-falantes nas salas de cinema, nos quatro cantos e um quinto por trás da tela. Também afirmou que a decisão de dirigir o musical, foi “pelas possibilidades visuais oferecidas pela música”, levando os críticos a chamar de “comerciatismo de mau-gosto”. E completa sobre os críticos: “Meu filme expõe um conceito absolutamente novo de cinema musical. Não me preocupo com o que os críticos disseram ou irão dizer, simplesmente porque já desisti de interessar-me pelo que eles pensam”.




Henry Kenneth Alfred Russel nasceu em 3 de junho de 1927 na cidade de Southampton na Inglaterra. Foi fotógrafo e dançarino antes de se tornar diretor. Tentou o balé e o teatro, mas não obteve sucesso. Como fotógrafo, vendeu suas fotos para revistas. Seu primeira curta-metragem foi em 1956 com “Peepshow”. Dois anos depois chegou a TV com curtas e documentários. Seu primeiro longa como diretor chegou somente em 1964 com “French Dressing”. A primeira indicação à prêmios foi no BAFTA na série documental da BBCOmnibus (1967 – 2003)”, para o episódio “Dance of the Seven Veils (1970)”, no caso o músico Richard Strauss. O programa tem a música como tema principal, trazendo a biografia de muitos músicos da época. Considerou o melhor trabalho que fez. “Mulheres Apaixonadas (Woman in Love, 1969)” levou Russell a receber várias indicações a prêmios. No Oscar ganhou de melhor atriz para Glenda Jackson e foi indicado a diretor, roteiro e fotografia. No BAFTA não foi diferente: 11 indicações. Ganhou de filme estrangeiro no Globo de Ouro, com Russell e Glenda indicados. Curiosamente, Oliver Reed, o padrasto de Tommy, participa do filme no triângulo amoroso. Sobre Glenda Jackson falou: “Quando ela entrou na sala me peguei olhando mais para suas varizes do que seu rosto, e só mais tarde percebi a magnífica personalidade de tela que era ela. Eu nunca conseguia entender direito.




O diretor seguiu dirigindo filmes e chegou a escrever um roteiro sobre Maria Callas e queria Sophia Loren no papel. O projeto foi descartado. Nos anos 80 fez seus últimos filmes para o cinema, talvez também os últimos com maior impacto: “Viagens Alucinantes” (Altered States, 1980) com William Hurt e “Crimes de Paixão” (Crimes of Passion, 1984) com Kathleen Turner e Anthony Perkins. Seu último filme para as telonas foi “A Prostituta” (Wrote, 1991) com Theresa Russell, que não é parente do diretor. Depois disso fez documentários, telefilmes e curtas. Também constam clipes de Elton John como “Nikita” e “Cry to Heaven”. Ken Russell, que foi apelidado de Orson Welles britânico, morreu em 27 de novembro de 2011 aos 84 anos.

 

Broadway



Do álbum ópera-rock para o cinema foram 6 anos. Foram mais 24 anos para a chegar na Broadway e 18 anos do filme para a peça musical. Em 22 de abril de 1993 estreou o espetáculo de Peter Townshend e sua trupe nos palcos do teatro Martin Beck Theater. Com 47 anos, sendo que tinha 22 anos ao lançar o álbum duplo de “Tommy”, a sensação de Townshend, segundo matéria do O Globo de 6 de abril de 1993, com o título “Sons de um herói no escuro”, foi de dor. O guitarrista do The Who explicou o motivo: “Tocar guitarra para mim, hoje, é uma agonia. Dói. Machuquei o braço em setembro de 1991: caí de bicicleta, torci o pulso e desde então tenho dificuldade em flexionar a mão”. Logo depois do acidente, conheceu Des McAnuff, através da produtora teatral Dodger Productions, propuseram montar o musical para os palcos da Broadway. Aceitou e ainda falou a única condição: “Para mim está bom. Isto é, desde que vocês consigam um bom diretor e me deem tempo para acabar de rever o texto”. O diretor foi McAnuff e coautor do texto.




Houve algumas alterações no texto para adaptar para os anos 90, como a troca da Primeira Guerra Mundial pela Segunda Guerra Mundial, as gírias, um final um pouco diferente. O resto está tudo como nas canções de 1969. O caminho da obra foi longo. Do álbum, ainda houve um concerto com cada integrante do grupo fazendo uma personagem em 1970. Em 1972 o espetáculo all-star com participação da Sinfônica de Londres. O filme não demorou e chegou as telonas em 1975. Ainda teve o livro em 1977. O próximo passo que faltava: um musical na Broadway. Nos anos 70 houve outras obras de compositores, letristas e apaixonados por musicais, seja no palco dos teatros, seja no cinema. “Jesus Cristo Superstar”, que segue a mesma linha de “Tommy”, também teve peça, filme, livro e ainda muito vivo nos palcos pelo mundo afora. Muitas outras obras no cinema, no palco seguiram a linha de sucesso. “Tommy” até hoje ainda é encenado na Broadway.



O Brasil também recebeu o show teatral. Em agosto de 1996 a equipe do espetáculo aterrissou no Rio de Janeiro para apresentar “Tommy”. Desta vez, Jason Reiff vive o jovem cego, surdo e mudo. Como tudo que passa, houve novamente alterações na trama, mas segundo a diretora Victoria Bussert, em matéria de Karla Rondon Prado do O Globo de 23 de agosto de 1996, a história fica açucarada, como o pai matando o amante, ao contrário do longa de 1975.  Esta mudança é logica e não impede o trauma, já que o Tommy quer é defender a única família que tem e terminar feliz”, diz Bussert. Os diálogos também sofreram alterações. A diretora explica: “É uma forma de torna-la acessível, sem perder a alma da obra”.





A estreia ocorreu no dia 22 de agosto de 1996 com ingressos entre R$ 25,00 a R$ 70,00. Trouxeram 45 integrantes, 25 delas no Brasil, 25 toneladas de equipamentos, 20 caminhões para transportar a carga, 3 dias para montar, 300 instrumentos de luz (todos importados). 25 atores selecionados no total, trocam em sete em sete minutos os 1070 figurinos, com uma média de 4 personagens. O show ainda teve 3 teclados, 2 guitarras, bateria e trompa e 15 projetores com 450 slides.




Tommy” recebeu 10 indicações ao Tony Awards, o Oscar do teatro nos Estados Unidos. Levou 5 para casa.

Observação: o texto não inclui sobre a banda The Who e suas músicas do disco Tommy. Para maiores informações, procure nos links abaixo, ou pesquise em sites especializados.


Ficha Técnica

⭐⭐⭐

Tommy

Título Original: Tommy

Direção: Ken Russell

Roteiro: The Who, Peter Townshend, John Entwistle, Keith Moon, Ken Russell

Duração: 111 minutos

País: Inglaterra

Produção: Columbia Pictures, Robert Stigwood Organisation Ltda., Hemdale

Distribuição Brasil: Sony Pictures

Disponível no Brasil: Amazon Prime Vídeo


 

Fontes:

https://acervo.oglobo.globo.com/

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=030015_09&pesq=%22FILME%20TOMMY%22&hf=memoria.bn.br&pagfis=47944

https://www.adorocinema.com/filmes/filme-847/curiosidades/

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=124745&pesq=%22FILME%20TOMMY%22&hf=memoria.bn.br&pagfis=11947

http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=124745&pesq=%22FILME%20TOMMY%22&pasta=ano%201976\edicao%2000357&pagfis=12878

https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2011/11/morre-o-cineasta-britanico-ken-russell-1.html

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/8/19/ilustrada/14.html

https://monkeybuzz.com.br/materias/dossie-the-who-50-anos-em-50-musicas/

https://monkeybuzz.com.br/materias/a-historia-de-tommy-narrada-por-the-who/

https://rollingstone.uol.com.br/search/?q=the+who

https://rollingstone.uol.com.br/noticia/tommy-the-who/

 

Imagens:

Google imagens


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